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Catarina Saturio

Catarina Saturio

Não sente nada. Nem bom nem mau. A determinada altura da vida deixou de sentir. Chamam-lhe embotamento afectivo, apatia. Começou como defesa, digo eu. As emoções eram tão fortes, os acontecimentos tão soturnos que deixou de sentir. Era demasiado. Não sabia que ao deixar de sentir o que era mau, ao ausentar-se totalmente de tudo o que era absolutamente insuportável, se alastraria a todas as emoções. Na altura foi o que pôde fazer para enfrentar o que era impossível viver com todo o corpo e toda a alma. Hoje os acontecimentos resvalam pelo corpo como se não surtissem qualquer efeito. E só queria sentir alguma coisa. As vozes ecoam lá fora, os risos são como mudos e esboça um sorriso quando não tem vontade, só para não parecer mal. Desadequado. Quer chorar e não consegue. As lágrimas ficam presas num qualquer sítio do corpo que não consegue identificar. Há tanto tempo que não sente sequer o corpo. Ausentou-se de si. O corpo vai dando sinais ao início subtis. O coração bate mais forte, as mãos suam. Mas nem uma lágrima. O corpo vai dando sinais, cada vez mais fortes e não percebe de onde vêm. Como se o corpo gritasse as emoções que não sabe sentir.

Pouco a pouco vão-lhe ensinando, com calma, com paciência, a respirar para essas sensações. Percebe que prende as lágrimas no nó que sente na garganta. Respira para o nó. Desenha-o. Pinta-o com as tintas que a psicóloga lhe passa para a mão. Vê a forma que ganha esse nó, agora mais real, já não apenas uma sensação distante no corpo. “E se esse nó falasse?”. E as palavras jorram desse aperto na garganta. E a vontade de chorar regressa, já sob a forma de lágrima ainda contida. E permite-se contactar com essa lágrima, com essa dor que até hoje parecia já não fazer sentido. Afinal, tinha sido há tantos anos. Dizem-lhe que as lágrimas não choradas permanecem presas no corpo. Que os lutos não se fazem com o tempo cronológico mas com a permissão de sentir a perda. E permite-se. Já não parece ridículo voltar a sentir a dor que não pôde sentir antes. E o mundo de preto e branco passa a ter mais cores, pastel ao início, tímidas; cores mais fortes à medida que vai sentindo, que deixa que os acontecimentos tenham eco em si. Os risos já não parecem de um mundo à parte. Sorri também, agora com mais vontade. Porque as emoções sentem-se todas.