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Já não sei brincar

Já não sei brincar

O abuso sexual de menores é entendido como qualquer conduta sexual praticada entre uma criança ou um adolescente e alguém num estágio psicossexual mais avançado de desenvolvimento (viz. adulto ou criança mais velha), sendo a criança utilizada para estimulação sexual do perpetrador (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005). Segundo Hirata e Baltazar (2003), esta interacção sexual imposta à criança ou adolescente através de violência física, ameaças ou indução da sua vontade, pode envolver penetração anal ou vaginal da criança, toques genitais ou contacto oral-genital. O abuso sexual de crianças inscreve-se, porquanto, no contexto da violência contra as crianças, definida por Kunzman (1990), como qualquer forma “de abuso físico, emocional, sexual, negligência ou qualquer outra forma de exploração que resulte em risco para a saúde da criança, para a sua sobrevivência, desenvolvimento e dignidade” (cit. por Maria, 2007, p. 15).

A revelação progressivamente crescente de abusos sexuais de crianças ocorridos no contexto institucional a par com a constatação da existência de uma origem sociocultural (quase) indiferenciada do abusador (viz. pais de família, adultos comuns do ponto de vista das práticas sociais, etc.), despertou o interesse por este fenómeno, tornando-o um foco de atenção científica por várias áreas disciplinares, como sendo a Psicologia, o Direito, a Medicina e a Psiquiatria, ao aluir severamente um dos tabus que a sociedade tem por mais intocável – a sexualidade (Maria, 2007; Cordeiro, 2003). Cordeiro (2003) considera que, de facto, uma das grandes contrariedades na abordagem do abuso sexual de crianças e, mais precisamente, da pedofilia, assenta na “dificuldade que a maior parte dos adultos, incluindo profissionais de saúde, têm em aceitar a existência da sexualidade infantil” (p. 232).

Outro dos maiores obstáculos à apreciação científica da problemática dos abusos sexuais de crianças deriva da postura de negação da ocorrência e de inculpação da pessoa abusada, assumida, até às décadas de 70 e 80, por diversos teóricos da Psicologia. De facto, no início do século XX, a teoria psicanalítica justificava o abuso sexual de crianças com a sedução infantil (Salter, 2003, cit. por Maria, 2007).

Assumindo que o respeito e preocupação pelas crianças foram tardios no percurso evolutivo da Humanidade, Maria (2007) considera que “não estamos perante um problema novo, mas sim perante uma nova preocupação” (p. 14). De facto, é só no final do século XX, com a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989) e a solicitação da União Europeia a todos os seus estados membros para a criminalização do abuso sexual (1996), que os programas de prevenção primária do abuso sexual de crianças começam a adquirir algum relevo, acrescendo-se à punição dos abusadores (perspectiva criminal) e à defesa e protecção das crianças com vista à remoção do perigo em que estas se encontram (perspectiva tutelar). (Maria, 2007; Perdigão, 2003).

Hérnandez (n/d) refere dois modelos explicativos das consequências do abuso sexual na criança ou adolescente: modelo do transtorno de stress pós-traumático, de Wolfe, Gentile e Wolfe, 1989; e modelo traumatogénico, de Finkelkor, 1988. Segundo o primeiro, a maioria das vítimas de abuso sexual apresentam como principais consequências: revivência do trauma (através de sonhos e pensamentos durante a vigília); evitação persistente de qualquer coisa que lembre o trauma (e.g. pessoas, actividades) e persistente hiperexcitação (e.g. dificuldades de concentração, hipervigilância), havendo uma comorbilidade do Transtorno por Stress Pós-Traumático com Transtorno Depressivo. O segundo modelo refere-se à interferência do abuso no desenvolvimento sexual normativo da vítima, considerando-se que o perpetrador transmita à criança concepções erradas sobre a moral e condutas sexuais normais, o que gera um estado confusional das suas crenças relativas à sua identidade sexual e à normalidade destas relações sexuais, bem como dificuldades no estabelecimento de relações de intimidade e na integração das dimensões afectiva e erótica (viz. evitamento do sexo; dificuldades ao nível da activação sexual). Além desta sexualidade traumática, este modelo consagra ainda a estigmatização (que se traduz em condutas auto-destrutivas aliadas a crenças auto-punitivas), a falta de confiança (da criança face aos adultos) e a impotência (sentimento experimentado pela criança de que esta não possa prevenir o abuso porque o adulto utiliza a força física e a coacção psicológica).

 

Atendendo à experiência subjectiva da vítima, impõe-se à sociedade a imperiosa necessidade de uma reflexão atenta, cuidada, compreensiva e não estigmatizante sobre o fenómeno do abuso sexual, privilegiando-se um apoio sócio-emocional responsivo ao abusado, no sentido de uma reintegração psicossocial e de uma reorganização psicossexual da sua personalidade. Urge, a este respeito, referenciar o facto de, no contexto português, uma criança abusada sexualmente e cujo crime chegue às autoridades ter de repetir, em média, oito vezes os factos da investigação, contactando com pelo menos quatro técnicos diferentes (viz. comissão de menores, segurança social, etc.), o que tende a potencializar a possibilidade de repetição traumática.

 

Porque, nas palavras da Psicóloga norte-americana Anna Salter, “O Silêncio é a alma das Agressões Sexuais”, impõe-se na Psicoterapia com vítimas de abuso sexual a criação de um espaço Novo, em que os silêncios e as dores possam ser gritados, desamarrando-se a revolta e dando-se corda a outros afectos possíveis, não aprendidos ou esquecidos sob o Império do Infortúnio.

 

Porque acredito que é sempre possível (re)construirmos a Casa de Nós mesmos, espero por si… no Nosso Cantinho Psicoterapêutico.

 

Autora: Bruna Rosa

 

Referências Bibliográficas

Cordeiro, J. (2003). Psiquiatria Forense. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Habigzang, L., Koller, S., Azevedo, G. & Machado, P. (2005). Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21 (3).

 

Hérnandez, M. (n/d). Maltrato y abuso sexual infantil y juvenil. Psicopatologia Infantil y Juvenil.

 

Hirata, P. & Baltazar, J. (2003). Os efeitos psicossociais causados em vítimas de abuso sexual. Psicologia.com.pt, pp. 1-4.

 

Maria, S. (2007). A participação da comunidade na prevenção dos abusos sexuais de crianças. Análise Psicológica, 1 (XXV), pp. 13-24.

 

Perdigão, A. (2003). A abordagem jurídica. Pedofilia e abuso sexual, 68 (6).