(…)
Rough: Sim Agora, Senhora Manningham, faço uma pergunta pessoal: quando é que você primeiro teve a noção de que sua razão lhe estava a fazer partidas?
Sra. Manningham: Sempre tive esse pavor. Minha mãe morreu louca, quando ela era bem jovem. Quando ela tinha a minha idade. Mas as coisas começaram a acontecer nesta casa apenas nos últimos seis meses.
Rough: O que é que está a deixá-la louca de medo?
(…)
Sra. Manningham: não sei o que dizer. Tudo parece incrível… É quando estou sozinha à noite. Tenho a ideia de que alguém está a andar por aí lá em cima… (Ela aponta para cima) Lá em cima… À noite, quando o meu marido sai — Ouço barulhos, vindos do meu quarto, mas tenho muito medo de subir…
(…)
As luzes a gás começam a desaparecer. A senhora Manningham levanta-se de repente
Rough: Qual é o problema, Sra. Manningham?
Sra. Manningham: Calma! Fique quieto! Ele voltou! Olhe! Olhe para a luz! Está a perder a chama! Espere!
Há uma pausa. As luzes a gás desaparecem ainda mais….
Patrick Hamilton, dramaturgo e escritor britânico, escreveu em 1938 a peça Gaslight, onde caracteriza a relação entre um marido (Jack Manningham) e a sua mulher (Bella Manningham) nos anos 1880. Jack tenta, lenta e deliberadamente, levar Bella à “loucura”. Ele dá-lhe tarefas para guardar objetos e, posteriormente, esconde-os sem que ela se aperceba. Mais tarde, acusa-a de os ter perdido – como se fosse prova de que Bella estaria a enlouquecer. A sua fragilidade emocional agrava-se e a dúvida instala-se.
Com o desenrolar da peça, Bella recebe a visita de um senhor que se cruzou com o marido na rua. Este (Rough) revela ser um detetive que investiga um caso de assassinato e acredita que Jack Manningham é o responsável. O piso superior da casa, na realidade, pertence à vítima do crime.
Durante uma conversa com o detetive Rough, Bella apercebe-se de que o marido a está a manipular ao observar os candeeiros de gás. Nota que, sempre que Jack sai à noite, a luz enfraquece, como se alguém estivesse a utilizar a pressão do gás. Coincidentemente, ouve também passos no andar de cima. Mais tarde, descobrem que Jack visita todas as noites esse piso à procura das joias da sua última vítima.
O fenómeno de gaslighting é um tipo de abuso emocional que ocorre quando alguém tenta fazer outra pessoa duvidar de sua própria sanidade, responsabilidade e perceção da realidade.
No caso de Bella, esta tinha dúvidas sobre o marido e o seu paradeiro, pois ele dizia que ia ao Clube da cidade tratar de negócios. Quando Bella levanta o assunto, Jack insulta-a e sugere que está a enlouquecer como a mãe – um ponto sensível para ela. O conceito de loucura, neste caso, surge como consequência do sofrimento causado pelo questionamento da sua própria perceção: o que é real e o que não é?
Existem vários tipos de gaslighting que podem ocorrer em diferentes contextos.
Aqui estão alguns exemplos comuns:
- Negar a realidade: Existe uma tentativa de negar a realidade de uma situação, mesmo quando há evidências que comprovam o contrário. Isso pode levar a vítima a questionar sua própria sanidade e perceção da realidade.
- Minimizar ou desvalorizar sentimentos: tentativa de minimizar ou desvalorizar os sentimentos da pessoa visada. Por exemplo, um companheiro pode dizer ao outro que ele(a) está a exagerar ou a ser muito sensível em relação a algo que aconteceu.
- Manipulação de informações: manipular informações para confundir a vítima. Por exemplo, uma pessoa pode dizer uma coisa a um grupo de pessoas e outra coisa completamente diferente o(a) companheiro(a), deixando-o(a) confuso(a) e incerta sobre o que é verdadeiro.
- Culpar o outro: Nesse tipo de gaslighting, o agressor culpa a vítima por algo que ele(a) próprio(a) fez. Por exemplo, uma pessoa pode dizer à outra que ela(e) o(a) provocou ou que mereceu o que aconteceu.
- Fingir esquecer ou distorcer o passado: Neste tipo, a pessoa pode fingir esquecer-se do passado ou distorcer os fatos de forma que outra pessoa se sinta confusa e incerta sobre o que realmente aconteceu.
- Desacreditar a vítima: Nesse tipo de gaslighting, a pessoa tenta desacreditar outra e fazê-la(o) parecer pouco confiável ou pouco digna(o) de confiança. Por exemplo, uma pessoa pode dizer que a outra é muito emocional ou não tem credibilidade por pouco profissionalismo, ou por ser louca(o), etc.
É importante notar que o gaslighting pode assumir muitas formas e variar conforme a situação. No entanto, todos os tipos de gaslighting têm em comum a tentativa de fazer a vítima duvidar da sua própria sanidade e perceção da realidade.
No caso da peça, Jack usava o passado de Bella de forma manipuladora (a mãe morreu com problemas de saúde mental), mentia, negava e culpabilizava-a pelo desaparecimento dos objetos, com o intuito de a fazer duvidar de si mesma.
Procuramos muitas vezes um significado para experiências que vivemos, seja uma discussão intensa ou um conflito familiar. Tentamos justificar comportamentos abusivos e ponderamos se somos os causadores de determinada situação adversa.
Tendo em conta a história familiar de Bella, é compreensível porque começou a duvidar de si mesma. O gaslighting é uma estratégia frequentemente bem-sucedida porque explora dúvidas naturais da existência humana. É comum pensarmos no impacto que temos nas nossas relações e no controlo que exercemos sobre elas: “Se calhar eu errei, e o meu companheiro tem razão em estar irritado comigo.” Ou ainda: “Fui despedido porque claramente não fui um bom trabalhador, sou pior que os meus colegas.”
Desta forma, o gaslighting torna-se ainda mais eficaz, pois, para muitas vítimas, pode ser mais fácil assumir a responsabilidade pelas adversidades do que aceitar que estão a ser manipuladas. Seja para tentar manter algum controlo da situação (“Se calhar fui parvo e não devia questionar tanto o meu parceiro, para que ele não grite comigo”) ou porque acreditam que “tem de existir uma razão lógica para alguém que amo e respeito me tratar desta forma… e simplesmente ainda não a percebi.”
Pode ser sedutor acreditar na pessoa ou nas pessoas que nos tentam convencer de que estamos loucos, pois a alternativa é confrontar a ideia de que quem amamos pode não ser bem-intencionado. Nessas situações, pode parecer preferível acreditar que somos os causadores do nosso próprio mal. Aceitar que alguém em quem confiamos e amamos não tem o nosso bem em mente implica uma visão muito mais sombria do mundo.
Uma das particularidades do gaslighting é que não é apenas prejudicial para as vítimas no imediato. Mesmo depois de se afastarem da situação, os seus efeitos podem ser duradouros. Estudos mostram que o gaslighting pode causar danos profundos à saúde mental e emocional, incluindo depressão, ansiedade e Perturbação de Stress Pós-Traumático. Muitas vítimas continuam a culpar-se por situações adversas futuras porque foram convencidas disso no passado, seja por terceiros ou por si mesmas.
No entanto, é importante reforçar que nem todos os desentendimentos indicam manipulação intencional. O contexto e o propósito subjacente fazem toda a diferença. Em muitas circunstâncias, pode ser difícil discernir exatamente o que está a acontecer – e pode nem ser uma tentativa maliciosa de manipulação.
Para pessoas que experienciaram traumas, é essencial procurar apoio de profissionais de saúde mental qualificados para lidar com os efeitos do gaslighting e do trauma. Isso pode incluir terapia individual, grupos de apoio ou outros recursos.
Se quiser saber mais sobre Gaslight, pode ver a adaptação cinematográfica de 1944, realizada por George Cukor e protagonizada por Ingrid Bergman.
Fontes:
- American Psychological Association. (2017). Gaslighting: Know it and identify it to protect yourself. Psychology Today
- National Domestic Violence Hotline. (2021). Gaslighting
- Smith, S. G., et al. (2018). NISVS: 2010-2012 State Report. CDC
- Stern, R. (2007). *The Gaslight Effect*
- Sarkis, S. (2018). *Gaslighting*. Seattle Times
Gaslight – Loucura em 2 Atos
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