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Autor: Joana Fojo Ferreira

Nós somos o que fazemos do que quiseram fazer de nós

Adaptado de Jean-Paul Sartre

Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?… é uma sequência de questões que apela para a continuação de uma identidade ao longo do tempo – um presente impelido por um passado e a caminhar para um futuro.

E de facto, nós somos muito fruto das nossas histórias e vivemos muito também em função dos nossos projectos, pelo que o passado e o futuro tendem a estar connosco no presente.

O que acontece é que muitas vezes a nossa história condiciona a nossa capacidade de no presente nos mobilizarmos para a concretização dos nossos projectos de futuro, e damos por nós numa posição de termos que escolher continuar os legados do passado ou investir nos projectos para o futuro.

A escolha não é fácil, geralmente o desejo é investir no futuro, investir em nós, nos nossos projectos, mas a pressão, exterior e interior, é para continuar os legados do passado. Queremos diferenciar-nos e seguir os nossos passos, mas temos medo de perder a aceitação e o amor das figuras do passado que nos acompanham no presente, ainda que não nos identifiquemos com o que elas parecem desejar para nós.

Ainda que duro, nós somos de facto o que fazemos do que quiseram fazer de nós; ainda que difícil, a escolha do passado ou do futuro, dos que nos antecederam ou de nós próprios, dos nossos projectos, é sempre nossa.

E ainda que a escolha do passado seja sempre uma possibilidade, deixo-vos o Cântico Negro de José Régio que tão bem nos diz “Não vou por aí!”

 

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui!”

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

 

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!