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Autor: Francisco Gonçalves Ferreira

Hoje gostaria de dedicar umas palavras aos pais que estão casados com os filhos. Não, não estou a falar das relações incestuosas ou de carácter pecaminoso que desafiam as leis mais antigas da maior parte das religiões ocidentais, nomeadamente judaico-cristãs, ou da própria instituição familiar, até do ponto de vista jurídico.  Também não estou a falar das conjunturas familiares aparentemente bizarras e estranhas para a sociedade “comum”, que tiraram o sono a sociólogos e antropólogos como Durkeim, Malinowski ou Levi-Strauss pelas questões éticas, culturais e existenciais que levantavam e ainda levantam. O que eu gostaria de falar hoje prende-se com um argumento bastante observado e discutido já desde há umas décadas entre psicólogos e psiquiatras, educadores e técnicos sociais, terapeutas familiares e afins, e que continua a temperar as dificuldades relacionais de muitas famílias dos dias de hoje, pelo menos das que conseguem pedir ajuda. Estou a falar de um termo que os que gostam de nomes designam por “parentificação” e que significa que um filho ou uma filha pequenos passam a desempenhar um papel de adulto da família, que corresponde muitas vezes, nas famílias com apenas um progenitor, à adoção de funções, por parte do filho, semelhantes às de um pai ou de um marido.  É a filha ou o filho que se habituou a dar festinhas à mãe para ela adormecer, é o filho ou a filha que se tornou o eterno conselheiro e sábio das decisões importantes, é o filho ou a filha que se habituaram a partilhar a cama com o adulto.

Muito embora esta situação se identifique algumas vezes entre filho ou filhos e pai, é especialmente com as mães que este tipo de relação se observa, pelo menos na prática clínica comum.

A parentificação começa de uma forma positiva, ou seja, pela experimentação de um dos instintos que mais relevância teve para a evolução das espécies ditas “sociais”, isto é, o de proteger outro ser. É por isso adaptativo que a criança possa experimentar-se como “capaz de proteger e transmitir segurança”. A perigosidade da parentificação é quando essa experiência se transforma numa inversão total dos papéis, certificando-se a criança da sua capacidade para proteger, mas privando-se da sua capacidade para “ser protegido”.

Por exemplo, a situação não é assim tão grave quando a mãe, desejando que o filho durma consigo porque se sente sozinha, afirma que é a criança a querer dormir com ela, mas torna-se numa realidade particularmente arriscada quando é a criança que se identifica nos comportamentos de um verdadeiro parceiro da mãe.

O problema quando existe esta rigidez na inversão dos papéis de cuidador é que a criança acaba por ser bem mais protetora da mãe comparativamente à mesma capacidade demonstrada pela mãe na relação com o filho; numa inversão da protetividade tão desequilibrada a criança encontra-se em maior risco. A proteção deixa de ser um facto ocasional, transformando-se num elemento estável da relação mãe-filho e a criança começa a construir uma imagem de si, uma identidade, definindo-se como “quem  deve proteger constantemente a mãe”. Os tempos evolutivos do seu processo de crescimento confundem-se, as suas necessidades de confiar, ser protegido e cuidado são negados, não são reconhecidos, existe definitivamente um risco grave de compromisso do seu processo evolutivo que pode, não raramente, desencadear  uma manifestação sintomática.

Para além disto, neste processo de compensação das necessidades do adulto, as crianças “cozinham” com dois dos seus mais típicos ingredientes, a “protetividade” e a “criatividade”, uma “refeição bomba”, altamente eficaz, porque “protege” totalmente a mãe da eventualidade de lidar com as suas angustias. “Eu vivo para os meus filhos”, dizia-me uma mãe na consulta.

É o que acontece, por exemplo, quando dois irmãos se tornam violentos um com o outro obrigando permanentemente à intervenção da mãe, ou quando a mãe começa a ser chamada repetidamente à escola pelos comportamentos desafiantes do filho, ou quando outros sintomas comportamentais se tornam recorrentes no quotidiano da família ao ponto da mãe julgar que o seu sucesso parental será total quando conseguir “controlar as feras”!

Para superar o esgotamento emocional inerente a estas situações de inversão dos papéis é muito importante que o progenitor isolado conquiste uma posição “EU”! Cuidar de si próprio, ouvir e responder às próprias necessidades, saber estar na vulnerabilidade com menos culpa e pedir ajuda são, para além de movimentos necessários à promoção de uma autoestima positiva, modelos de comportamento que serão assimilados pelos filhos, como aspectos “rentáveis” no investimento de uma identidade competente para a resolução de problemas.

É por isso que se é pai ou mãe e sente que a sua vida é dedicada neste momento à resolução dos problemas dos seus filhos, talvez valha a pena refletir no seguinte: o que seria de si se não precisasse tanto de cuidar dos seus filhos? Se não se ocupasse tanto dos seus filhos, o que é que poderia ocupar a sua cabeça? Como seria a sua família se as coisas corressem bem? Se imaginar uma resposta começada por “Eu sinto…”, “Eu poderia…”, “Eu quero…” ou “Eu não quero…” já deu um paço importante para a mudança. Se acrescentar o resto, sabe por onde pode começar.