Vivemos com outros, num mundo no qual seria impossível o contrário, pois somos demasiado frágeis (e incompletos) para sobrevivermos sem qualquer tipo de ligação. Uma condição de partida por sermos humanos. Sabemos isso desde que nascemos, e ao longo da vida vamos desenvolvendo articulações cada vez mais complexas. Muitas vezes, camuflamos esta nossa fragilidade e dependência, ao ponto de quase termos a ilusão de que não precisamos de ninguém, ou então ao ponto de não percebermos o que os outros nos dizem. Outras vezes há, em que exaltamos demasiado estas fragilidades e dependências, por exemplo quando acreditamos que a nossa presença individual não tem qualquer peso ou valor em determinadas situações. Masmesmo assim, entre exageros, minorações, ou negações de valor, vamos criandoredes intrincadas de interdependências várias (comunitárias, económicas, profissionais, etc.). Tecemos diversasculturas, com valores distintos e normas próprias que orientam milhares de pessoas em diferentes medidas; criamos instituições; elegemos ícones de referência; e vamos por aí fora escrevendo a História da humanidade, que vai sendo, ao mesmo tempo, a história de cada um de nós.
A psicoterapia Existencial tem como um dos seus princípios norteadores que existimos sempre em relação. Seguindo um ponto de vista existencial do Ser-em-relação, os problemas e preocupações de cada pessoa deixam de poder ser vistos e analisados a partir do sentido exclusivamente individual. O eminente psicoterapeuta Ernesto Spinelli refere que questões a ver com a “escolha”, “liberdade” e “responsabilidade” deixam de poder ser vistas como isoladas ou contidas num ser separado (como num “self” ou num “outro”). Desta perspectiva, e ainda segundo este autor, nenhuma escolha pode ser apenas “minha” ou apenas “nossa”, nenhuma experiência de impacto a ver com uma determinada escolha pode ser separado em termos de “a minha responsabilidade” versus “a tua responsabilidade”, nenhum sentido de liberdade pessoal pode assim evitar as suas respectivas dimensões interpessoais.
Dependemos uns dos outros em várias medidas, e isso nem sempre é satisfatório ou benvindo (por nós ou por outros). Na verdade a experiência de convivência com outras pessoas é tensa ou angustiante em pelo menos um dos momentos da interacção. Não são então raras as vezes em que nos deparamos com várias doses de frustração, desilusão, conflitos, e mal-entendidos, que resultam em dificuldades várias de expressão ou de compreensão.
No entanto, precisamos continuar a tentar, porque precisamos de viver com outros e organizarmo-nos juntos. Somos parte de famílias, comunidades, sociedades, e parte (fundamental) do que é a Humanidade. Somos, quer queiramos ou não, co-responsáveis pelas direcções que vamos tomando enquanto Humanidade.
Quando as relações (e/ou as pessoas) começam a ficar mais maduras, podemos invariavelmente começar a assistir aos primeiros conflitos, que dão origem às primeiras crises e instabilidades. Ao observarmos as dinâmicas dos grupos a que todos vamos pertencendo em alguma medida, vemos que nesses momentos algumas pessoas colocam em causa a continuidade do que já conhecem, p.e. fomentando subgrupos (dentro de um único grupo), oudesafiando todo o grupoa repensar-se(se tivermos sorte) construtivamente. Na melhor das hipóteses surge a procura de novas formas deorganização e de actualização, de acordo com as necessidades e circunstâncias revistas. Num grupo maduro, tal como acontece com cada individuo, há uma inerente condição de actualização e predisposição para mudanças sustentadas.
Atenção para dois aspectos:
1) Relações (e pessoas) maduras não têm necessariamente a ver com a quantidade de tempo acumulado (ou sequer comidade cronológica), mas sobretudo com a sua qualidade: do tempo vivido, das conquistas de diferentes níveis de intimidade/proximidade afectiva, capacidades para a sinceridade, para novos questionamentos,e para a abertura às diferenças.
2) Sabemos por experiência que, face a um momento de crise, espontaneamente as pessoas tendem a reorganizar-se dentro de um grupo através da criação de subgrupos, de acordo com actualizações ao nível dos interesses ou motivações, para conseguirem suportar a continuidade e a manutenção de um grupo maior. Esta medida “natural” e instintiva ajuda a fortalecer algumas das pessoas, que de outra forma não seriam capazes de gerir uma rede mais ampla e complexa de interacções em simultâneo. Habitualmente, só em contexto Psicoterapêutico (ou então de Mediação de Conflitos) é que podemos ir além das formações espontâneas (como os conflitos de subgrupos), portanto só em contextos onde pode ser mais seguro aprender a fazer algo diferente do instintivo ou “automático”, portanto algo mais conscientemente reconhecido e reflectido.
Nestes momentos, deparamo-nos com um teste à nossa capacidade de resistência à frustração, á mudança, e á capacidade para lembrar os limites e as possibilidades das ligações afectivas/ vínculos. Quando a instabilidadeou a rupturasão possibilidades, vale a pena pensarmos um pouco mais o que está em causa. Afinal, dependendo todos uns dos outros, em última instância como forma de sobrevivência colectiva, pensar a nossa forma de estar em grupo, é uma responsabilidade de todos.
Um grupo de pessoas é, tal como um organismo vivo, dependente de um funcionamento próprio. Quanto mais transparente e participativo for esse funcionamento para cada um dos seus elementos, melhor será para a sua saúde e satisfação relacional. Quanto mais respeitado e reconhecido for cada um dos seus diferentes elementos, mais rico será o tecido relacional, e consequentemente mais ricas serão as pessoas que o constituem. Quanto maior o potencial de desenvolvimento pessoal, maior o potencial de desenvolvimento colectivo: trata-se de uma relação exponencial.
Sabermos identificar e enfrentar os momentos de crise é um dos passos crucial para que consigamos manter vivas e viáveis as relações que nos unem. Requer que consigamos condições internas para termos alguns momentos de honestidade e de coragem.
a) Honestidade porque nos obriga a ver e perscrutar os problemas e as circunstâncias com uma visão suficientemente distante, de nós mesmos e do que à partida preferíamos ver;
b) Coragem, porque nesses momentos é preciso, ao mesmo tempo, aproximarmo-nos mais das nossas reais intenções, mas também das dos outros.
Ann Weiser Cornell, ilustre trainer deFocusing (um método de desenvolvimento Experiencial), diz-nos que cada Relação = distância + ligação/conexão. O mesmo é dizer que a melhor forma de nos relacionarmos connosco mesmos e/ou com outras pessoas, deve passar por conseguirmos encontrar a cada momento a distância certa para ver/escutar/palpar/saborear/sentir cada situação com a suficiente abrangência para além do pormenor. Mas também, e ao mesmo tempo, beneficiamos de (re)aprendermos a comunicarmos connosco mesmos e/ou com outros de formas mutuamente seguras e enriquecedoras.
Neste sentido, uma relação, tal como a responsabilidade partilhada que inicialmente focámos, não devem ser confundidas com modos de cair na abstracção ou na alienação individual. Pelo contrário, sob este olhar, trata-se de um modo de estar inteiramente vivido, inteiramente experienciado e presente, “de corpo e alma”. Hannah Arendt (no livro “As origens do totalitarismo”), analisou os perigos de uma experiência de grupo onde os seus elementos se diluem numa massa acrítica e anónima: quando nos escondemos por traz de um ícone, de um conjunto de ideias pré-concebidas, hábitos acomodados, etc. – No fundo, quando abdicamos do nosso poder pessoal e da influência que naturalmente somos só por existirmos, quando abdicamos da nossa individualidade. Na sua tese, Arendt mostra-nos ainda que o estado de isolamento e de solidão dos indivíduos, encerrados em visões ruminativas, ou fechadas sobre si e sobre o mundo (ou sobre grupos de influência),e fechados aos diálogos da diversidade e do valor partilhado, são algumas condições que aumentam a vulnerabilidade para o domínio absoluto, e em última instância, por um Estado totalitário.
Ao nível Existencial e Humanista, a responsabilidade e a liberdade partilhadas são dimensões colaborativas, são activas e envolvidas, e por isso, vemos através delas, que cada pessoa é uma esperança e uma potência de capacidade e competência única, insubstituível. A responsabilidade e liberdade partilhada pode acontecer quando procuramos construções relacionais mais informadas, mais conscientes, mais maduras, e mais seguras. Quando procuramos algo além do benefício exclusivo pessoal (ou do pequeno subgrupo), e encontramos uma paisagem mais ampla e aberta, onde cada pessoa tem o seu lugar próprio e necessário, onde um “todo” pode comunicar em confiança. É possível quando conseguimos o ambiente adequado, um ambiente que respeite as distâncias e as diferenças, e que, em simultâneo, valorize e reforce os diálogos e as ligações.
Identificando e percebendo as opressões, as omissões, e os abusos de poder, podemos despertar a nossa consciência. Abrindo espaços de diálogo alternativos aos que conhecemos, podemos encontrar novas formas de nos relacionarmos, e contribuir activamente para os grupos, e por fim para as sociedades que desejamos habitar.Com base em relações mais autênticas e equilibradas na sua constituição, podemos ser mais inteiros, não só ao nível pessoal (e das relações connosco mesmos e nossos conteúdos psíquicos), como também, por semelhança, aos níveis grupal e colectivo (nas relações com outros), enquadrados num mundo maior que o nosso quarto, a nossa casa,ou a nossa rua. Um mundo maior que nós mesmos, que, necessariamente, nos inclui.