Nos últimos anos a televisão começou a perder terreno no entretenimento, tanto para a internet (Youtube), como para outras plataformas PPV (p.e. Netflix), e por isso nos últimos meses tivemos uma nova invasão televisiva de produtos mais polémicos e, como tal, mais “chamativos”, como os programas que “fabricam” casais.
Como em muitos outros casos de entretenimento televisivo, estes produtos podem induzir a ideias erradas sobre a ideia de casal e o funcionamento normal ou desejável de uma relação.
Passando um pouco por cima da parte cómica dos programas, já muito explorada pelos humoristas, vamos abordar o tema por uma vertente um pouco mais séria, embora creia que a vertente mais ridicularizada e hiperbolizada dos actuais programas de televisão são uma das armas que os tornam tão chamativos. Neste exagero “cómico”, inclui-se o papel reduzido e ridicularizado da mulher jovem, como se tivéssemos regredido 70 anos, e a figura feminina actual fosse uma mera servente do homem, este com uma presença sobrevalorizada, e uma figura predominante da matriarca, que controla a vida do seu príncipe.
Além do humor, há algo que nos leva a ficarmos presos a estes programas – a vertente voyeurista. Já vão longe os tempos em que Teresa Guilherme tentava juntar, quase de forma forçada, casais entre os participantes dos reality shows. No fundo, os programas actuais são resumos ou simplificações do que era mais chamativo nos primeiros reality shows – casais e discussões.
E porque nos interessamos tanto por estes casais televisivos? Pegando no texto da minha colega, Dr.ª Rita Fonseca de Castro para a MAAG, (clicar para ver o artigo), sentimo-nos parte da história, quase como se aquele casal tivesse origem numa qualquer história ou conto de fadas, que podíamos ser nós próprios, e queremos que eles tenham um final feliz, e por isso torcemos por eles.
Mas voltando à essência chamativa e resumida dos programas, como em tudo o que é resumido, tem tendência a ser desvirtuado e a perder o encanto da “obra original”. As relações não se iniciam pelo fim, não são entrevistas de emprego, nem resultam de resumos, como os que existiam das Publicações Europa-América.
Pegando nos (maus) exemplos televisivos, qualquer expectador pode ser confundido e desvirtuar, conforme a sua ideia, experiência ou crenças, o que se passa naqueles programas. E não estamos apenas a referir a ideia de casal perfeito vendida numa qualquer história da Disney, ou do prazer de vasculhar a privacidade alheia.
Referimo-nos ao papel de ambas as pessoas no processo de criação da relação, da partilha mútua que existe na fase de sedução e paixão, da criação de planos, da procura de valores comuns e na origem de planos a dois. A fundamental criação da imagem de um casal no futuro, quase como se de um sonho se tratasse, e muitas vezes fora do controlo dos sistemas familiares de origem.
A generalização excessiva pode surgir destes casos e pode desvirtuar, ainda mais, algumas crenças erradas que alguns membros de casais possuem sobre si próprio ou sobre o casal.
Interessa ressalvar alguns pontos fundamentais, como o peso das famílias de origem (especialmente nos últimos programas estreados) e que, com frequência, são a origem de problemas nos casais actuais que nos chegam à terapia de casal. Os problemas passam tanto pela sua presença excessiva, pela falta de limites e fronteiras geracionais, como pelos valores que são impostos desde sempre e a crenças e ideais transmitidos pelos modelos familiares.
Não deixa de ser constrangedor verificar que, num momento da história contemporânea, em que tanto se fala e perseguem valores como a igualdade de género, o papel feminino tenha sido resumido e reduzido a meras expectadoras da escolha masculina, ou a um catálogo de empregadas domésticas e de damas de companhia, sendo avaliadas por um qualquer “comprador”.
Estes casos e estas pessoas não são o modelo, não são a maioria, nem são casais reais. Os casais não se formam escolhendo pessoas por cardápio.
A maioria das pessoas que participam neste tipo de programas apenas se submete a estas situações porque procura um ganho secundário, como a exposição (por razões diversas) e não procuram realmente um parceiro para a vida. A sua selecção não é inocente. As produtoras procuram pessoas bonitas, chamativas e até muito distintas umas das outras (basta verificar a imagem social associada ao “agricultor”), para manter o interesse dos espectadores, seja na história de amor, seja na vergonha alheia, seja na proliferação de discussões, muitas delas com origem nas diferenças de valores ou formas de comunicar.
É importante ter em mente que, devido à falta de “esforço” de uma, ou de ambas, as partes na procura de um par, os participantes comprometem-se menos com a relação e também se separam mais facilmente.
Quer isto dizer que, se nos for proposto uma pessoa, pela qual não tivemos que lutar pela sua atenção, não tivemos que conquistar, não tivemos que seduzir, nem de nos comprometermos, a separação acontece mais rapidamente ou facilmente, pois acabamos por culpabilizar essa incompatibilidade aos profissionais que nos tentaram “acasalar”. Ou seja, se não existe um esforço de se moldarem ou de cederem algum do seu espaço, a culpa foi do erro de casting, não foi dos protagonistas.
Para nós, enquanto terapeutas de casal, importa observar, reflectir e referir estes programas como um exemplo do poder das famílias de origem, das crenças e valores familiares associadas às relações conjugais, mesmo nos casais actuais. Mas, importa acima de tudo, reforçar que cada casal prevê a formação de um novo sistema familiar, com as suas próprias exigências, valores, regras e condições, que não se deve submeter aos caprichos de mães sobreprotectoras ou de ideias misóginas.
Para os telespectadores destes programas, típicos “tash tv”, não é fácil retirar dicas, estratégias, ensinamentos e semelhanças para a nossa própria condição. Será mais fácil retirar ensinamentos por aquilo que NÃO se deve fazer.
Percebemos que isto é apenas um produto de entretenimento, mas deveria estar presente em cada um de nós, enquanto espectadores, que as imagens são seleccionadas e as situações escolhidas para nos captar a atenção, e não constituem a vivência de um casal “normal”.
Os casais do mundo real terão que continuar a lutar pelo outro, a ceder para estar numa relação com o outro, e a ter que se esforçar por manter a relação interessante, viva e equilibrada e terão que continuar a complementarem-se nas suas falhas e a aproveitarem os pontos fortes individuais.
E, por enquanto, vamos apenas tentar rir com os programas de “quem quer casar, num contentor, com um operador de máquinas pesadas que conhece num automóvel e é avaliada pela mãe do mesmo?”!
Gustavo Pedrosa
Qual foi o interesse que este artigo teve para si?
Um artigo muito pertinente e actual, que nos deixa a reflectir sobre o tema.
Pena é que para tantos programas televisivos deste género, que passam ideias discutíveis e de bondade duvidosa, não haja o contraponto de programas que passem valores e conceitos que realmente beneficiem não só os casais em formação, mas também os que já existindo precisem de um reforço anímico face as agruras da vida. Será também esta mais uma forma de aproveitar, por um lado, a sede de protagonismo de uns, e por outro a frustração de outros na vida real? Obviamente alguns também passam por lá somente para ir buscar o cache sem se sentirem minimamente beliscados com a sua exposição em tal contexto. Enfim, o nossa opção poderá sempre passar por mudar de canal, mas devemos andar sempre a “fugir” a este tipo de programas? Ou em opção deveríamos exigir outros que realmente aproveitassem os bons profissionais especializados nos mesmos temas e que passassem mensagens e valores que ajudasse a nossa sociedade a ser mais autentica e saudável?
Sexo, Filhos e Rock ‘n Roll (ou festivais de verão)!
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