Quando a mutilação é o escape
Os comportamentos auto-lesivos podem ser variados, como intoxicação com medicamentos, drogas, álcool, comportamentos de risco como salto de altitudes sem segurança, relações sexuais desprotegidas, e também de auto-mutilação, como as queimaduras, arranhões, escoriações, e os cortes. São estes últimos o que mais me aparecem em clínica com adolescentes, talvez por serem mais facilmente reconhecidos. Estes comportamentos acontece com mais frequência nas raparigas e começa sobretudo na adolescência, permanecendo muitas vezes até serem jovens adultos.
Muitas vezes estes comportamentos são vistos como chamadas de atenção, típicos da efervescência da adolescência e nem sempre são levados muito a serio. Mas não deve ser bem assim. A verdade é que a adolescência é uma fase com vários factores de stress, como as alterações hormonais, a busca pela definição de quem são, com uma grande confusão própria de quem se está a construir; o peso que é dado à vida social, com a integração nos grupos de pares, embora muitas vezes se sintam completamente sozinhos/as, os vários papéis que vão desempenhando e que têm de se confrontar, a dualidade: não sou criança para x, mas ainda sou criança para y, e as comunicação e redes socais, com uma sobrecarga de exigências sobre o que deve ser feito/usado/partilhado.
É uma pressão muito grande, aliado a outros eventos externos stressores que possam existir, como traumas, mudanças de vida, fraca rede social, e por aí fora, mas também movimentos internos, como dificuldades em sentir, expressar e regular as emoções, fracas estratégias de lidar com os problemas, perturbações na saúde mental.
Os comportamentos auto-lesivos têm várias funções: expressão de dor; como uma distração para o sofrimento emocional que é demasiado intenso; dá um sentimento falso de alívio momentâneo; sensação de controlo sobre o seu corpo, sentimentos e situações de vida; para punição; para sentir euforia.
O que me apercebo muitas vezes, é que nem sabem expressar o que estão a sentir no momento do corte. Os cortes ou outros comportamentos de auto-mutilação, aparecem como regulação dessas emoções intensas, porque não sabem que mais podem fazer para que a dor emocional desapareça. Para além disso, sabemos que quando a pessoa se mutila, são libertadas substâncias analgésicas no organismo que dão uma sensação de prazer, mascarando a sensação de dor, o que torna este ciclo viciante. Depois desta sensação de alívio, costuma vir a vergonha, a culpa, o fechar-se sobre si mesmo/a, engrossando o desespero.
E os pais? Para os pais geralmente é um choque, um momento de dor e ao mesmo tempo de incompreensão.
Como estar atento? Geralmente, alguns sinais como grande irritabilidade, discurso mais agressivo, isolamento, humor deprimido, roupa mais comprida do que o habitual, sangue na roupa, muitos acidentes que justificam os cortes, hematomas e dores.
O que fazer? Não julgar ou criticar, sobretudo. Ao mesmo tempo, abrir espaço para ouvir a dor pela qual o/a seu/sua filho/a está a passar. Pense, se o cortar é um alívio, imagine o tamanho da outra dor. E com a pressão externa e interna que já existe, ainda se adiciona a crítica, incompreensão, zanga por parte dos pais, isso só contribui para que a dor emocional aumente. Um estudo feito com jovens hospitalizados por auto-mutilações, os sentimentos mais descritos são os de invalidação e falta de aceitação por parte da família. A congruência é muito importante: não vale dizer “gosto muito de ti” e depois “se não parares com isso mando internar-te”… E o ignorar e pensar que passa, não é de todo uma boa solução. É importante apender a falar sobre as situações e emoções que magoam, é importante partilhar o sentimento de impotência, de desespero. Pode servir de exemplo para que os jovens aprendam também a expressar de formas mais adaptativas.
Em terapia, é importante encontrar formas mais adaptativas de regular e expressar as emoções, alargar a rede de apoio, substituir os comportamentos auto-lesivos por comportamentos de auto-cuidado e de prazer, elevar a sua auto-estima, e assertividade.
Estão quase sempre associados alguma perturbação, seja depressão, ansiedade, perturbação de personalidade. Os comportamentos de mutilação são um grande preditor de suicido e podem ser perpetuados pela idade adulta, muitas vezes sobre outras formas, como comportamentos de risco, abuso ou dependência de substâncias. Caso saiba ou desconfie que alguém próximo está a passar por esta situação, procure ajuda profissional.
Qual foi o interesse que este artigo teve para si?
Muito obrigada pelos artigos,tem contribuído para minha formação, para o meu trabalho com os jovens. Excelentes temas.
Como professora, e mesmo como parte de uma família alargada, tive conhecimento de muitos casos de auto-mutilação: apreciei muitíssimo o artigo pela clareza e pelo que pode ajudar pais e educadores, vou partilhar!
Explica de forma bastante clara e simples o que muitas vezes quem passa por essas situações não consegue explicar.
Conheci pelo menos um caso que mais tarde se verificou, que era um problema de afirmação de identidade de género.
Gostei. Foi ótimo. Maravilhoso! E chegou num momento que eu precisava.
Gostaria de saber se posso partilhar e utilizar parágrafos colocando a referência. .
Obrigada. Gosto do trabalho de vocês.
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