Desafios conjugais em tempos virais
Vivemos todos dias que nunca tínhamos vivido antes. Tempos de pandemia, tempos de isolamento. Muitos dos que estão agora em casa, divididos entre o tele-trabalho ou o trabalho fora de casa (neste caso, recheado de preocupações e prevenções), filhos que estão forçosamente em casa, longe da escola e de todas as suas actividades habituais e que precisam de atenção, as tarefas de casa que continuam a ter que ser feitas, as preocupações da mais diversa natureza…
Somemos a esta equação já de si desafiante, a sobreconvivência com um marido ou mulher, companheiro ou companheira, com quem já se tinham alguns focos de atrito que emergiam com maior, ou menor, frequência. Consideremos que esses podem ser, até, atritos que eram facilmente ultrapassáveis, no contexto de uma relação permanentemente ventilada por idas e vindas do trabalho, correrias entre ocupações e interacções fora do âmbito relacional.
Mas, vamos agora confinar esses casais ao espaço casa, e vamos dizer-lhes que só podem sair em caso de necessidade urgente. Parece estar criado o cenário perfeito para o caos conjugal. Aliás, circulam já notícias (umas mais verosímeis do que outras) de que na China, país que se encontra já numa fase de recuperação da situação pandémica, os divórcios aumentaram. Em Portugal, circulam piadas sobre casais em clausura. Num registo muito mais sério e preocupante, a Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade veio alertar para a possibilidade de aumento do número de vítimas de violência doméstica. Por tudo isto, há um tema conjugal a que não é possível escapar.
Muitas vezes, a propósito de períodos de férias, surge a reflexão sobre os efeitos negativos que a sobreconvivência dos casais pode gerar. Se a comunicação do casal não é eficaz nas poucas horas diárias que passam em conjunto, dificilmente o será quando as duas ou três horas diárias são multiplicadas por sete ou oito, sem intervalos na convivência, sem as rotinas de “escape” que o casal muitas vezes adopta e com uma necessidade “forçosa” de convívio, muitas vezes sem outros intervenientes, que não sejam filhos (quando os há). Pensemos agora que não são sete ou oito, mas todas as horas do dia, todos os dias, e, com uma enorme incógnita sobre quando a vida de todos nós regressará ao normal. Esta incerteza causa níveis de tensão que muitos de nós nunca sentiram. As emoções estão ao rubro. E, se temos que aprender a gerir as nossas emoções, temos também que minimizar o impacto que estas vão ter no nosso companheiro/a e família. Para além da comunicação e das emoções que impactam directamente na primeira, existem ainda outras dimensões a ter em causa. Seguem-se, assim, algumas sugestões sobre o que pode ser feito, e o que não deve – mesmo! – acontecer, em dias de quarentena.
O que fazer durante a quarentena:
– Manter regras e rotinas, aceitando a nova “normalidade” em que nos vemos forçados a viver e, se necessário, introduzindo novos hábitos. Sentir que temos algum controlo sobre a realidade, num contexto marcado pela imprevisibilidade, é crucial. Pode ser introduzido um quadro de regras e tarefas. É importante que sejam mantidos os horários de acordar e deitar, das refeições, etc..
– Quem estiver em regime de tele-trabalho deve definir horários e espaços para a actividade profissional, com limites claros que diferenciem o tempo passado a trabalhar e aquele que é dedicado à família e tarefas de, e em, casa.
– Comunicar de forma clara, directa e objectiva sobre… Tudo! “Em tempo de guerra, não se limpam armas”. Numa altura em que tudo é vivido com muita intensidade e em que paira a indefinição e imprevisibilidade, é fundamental, mais do que nunca, comunicar sobre o que queremos, precisamos e, mesmo, não gostamos.
– Definir como vão lidar com eventuais conflitos. Pode-se pensar que não faz sentido, mas tem um valor preventivo muito elevado.
– É natural que nos sintamos mal, que tenhamos tendência a queixar-nos sobre o que sentimos. Contudo, é importante que o façamos sem culpabilizar o outro, usando no discurso o Eu. Se começarmos por Tu quando queremos verbalizar sentimentos ou necessidades, a probabilidade de o nosso interlocutor se sentir criticado é grande.
– Ouvir e validar o que o outro está a sentir com todas as preocupações que esta pandemia está a causar, independentemente do que pensamos/sentimos, bem como da tendência que podemos ter para apresentar logo uma solução. Além de não ser ser sentido como empático, existem muitas questões que não têm, efectivamente, solução.
– Perceber que todos temos formas diferentes de reagir ao perigo e ao medo, ter paciência, tolerância e ser compassivo para com os modos de reacção do outro. O momento por que passamos pode exigir maior capacidade de compreensão que o habitual. Podemos conhecer medos e inseguranças que não sabíamos que habitavam o nosso marido/mulher ou companheiro/companheira.
– Conversar sobre outras situações de crise que o casal já viveu, e ultrapassou, junto, pode ser útil, ajudando a dar um sentido de esperança de que tudo vai correr bem. Acresce que algumas das soluções que encontraram – juntos – no passado podem ser úteis na crise actual.
– Manter espaço individual. Por mais exíguo que o espaço em casa possa ser, é fundamental ter espaço e tempo para estar só, a fazer coisas de que gosta e que possam ser fonte de prazer, sob pena de se sentir sufocado, com todas as consequências negativas para o bem-estar e interacção que daí podem advir.
– Quando somos permanentemente invadidos por conteúdos informativos que suscitam preocupação (senão, mesmo, alarme) a vários níveis e, quando os casais se vêm forçados a estar juntos tanto tempo, muitas vezes a trabalhar e sob stress, é fundamental reservar algum tempo para alimentar a relação. Se nenhum dos elementos do casal estiver doente, uma sugestão pode passar por ir à rua e dar uma caminhada curta de mão dada. Ou, como o terapeuta conjugal John Gottman aconselha, partilhem um beijo diário de seis segundos. Este ritual pode fazer maravilhas pela sua relação! Em casa, porque não ver um filme ou uma série, aninhados no sofá? Porque não aproveitar este tempo que nos foi dado sem pedir, para alimentar o romance no casal? *
– Tanto o tempo para a individualidade, como o tempo para o casal, são importantes. Mas, fundamental, será conseguir atingir o equilíbrio entre estes e, ainda, o tempo que poderá ter que ser dedicado a filhos e tarefas em família.
– Idealmente, e conforme muitas vezes sugiro aos casais em terapia, estabeleçam alguma espécie de código para terem um “time-out” caso comecem a sentir que uma conversa está a ficar demasiado acesa. Outra estratégia pode passar por dar estrutura e limites para falar sobre temas mais delicados, dedicando X tempo a essas conversas. Fora do tempo definido é “proibido” tocar no tema.
– Se é sempre importante ter formas de “respirar fundo” para diminuir o nível de activação emocional a que se chega, muitas vezes, no discurso de uma discussão de casal, na situação de isolamento social actual, sê-lo-á mais ainda. Técnicas de Mindfulnessou, para com quem não esteja familiarizado com estas, técnicas simples de respiração – que podem ser feitas sozinho ou em casal – vão ajudar a ter maior foco no momento presente e a alcançar maior serenidade e tranquilidade.
– O tema financeiro é muitas vezes foco de divergência nos casais. Se for o caso, e sobretudo porque as consequências desta pandemia também vão ser sentidas nesse campo, é importante definir um plano desde já. Em primeira instância, sobre os gastos no presente. Depois, sobre o que fazer, como poupar. Este pode ser um dos temas discutidos no tempo sugerido num ponto anterior.
– Para que os casais não sintam que não têm vida para além da que têm em casal e com os filhos, porque não aproveitar os recursos que a tecnologia põe ao nosso dispor, para passar tempo – ainda que seja à distância – com amigos? Através de videochamadas, jogos online, ou outros.
– Numa lógica quase mais existencial, porque não aproveitar para aprender a relativizar? Ou seja, para pensar se aqueles temas sobre os quais costuma discutir terão, efectivamente, a dimensão que lhes costuma dar, à luz de tudo aquilo que estamos a viver.
– Na mesma linha, pensar que a situação actual não vai durar para sempre. Quando se sentir a desesperar, tente pensar que a situação de crise é temporária. Diga-o em voz alta para tranquilizar quem vive consigo.
O que não fazer durante a quarentena:
– Discutir temas fracturantes. Esta não é a altura indicada para trazer ao de cima questões que possam levar a uma maior activação emocional e conflitos mais acesos.
– Tocar naqueles que sabemos, de antemão, serem os pontos sensíveis, do nosso companheiro (aqueles a que chamo, em consulta, os “botões vermelhos” ou “gatilhos”). Por mais que nos incomode a forma como o outro estende a roupa, se chamamos a atenção sobre isso há dez anos e ainda não mudou, será que vale a pena discutir o tema agora?
– Esquecer de alimentar a relação, focando-se exclusivamente nos papéis profissional, de pais e de cidadãos, preocupados com tudo o que se passa à volta.
– Adoptar e/ou alimentar estilos de comunicação disfuncionais, como as críticas, as generalizações, a indiferença, o desprezo ou o silêncio.
– Esperar que o outro adivinhe o que se está a sentir e pensar.
– Interromper quem está a trabalhar a partir de casa, que já está a lidar com a mudança de espaço e precisa de foco e atenção extras.
– Desrespeitar a necessidade de espaço/tempo do seu companheiro, , sentindo-a como uma rejeição a si e/ou à sua companhia, e os limites de individualidade – os seus, e os do outro.
– Não mostrar emoções, suprimindo, ou evitando, falar sobre o que sente e o preocupa e não mostrando disponibilidade para acolher a expressão das emoções do outro.
* Porque não aproveitar o tempo em que ficam a sós, depois de, finalmente, os filhos irem dormir, ou terminarem as tarefas profissionais e de cuidado da casa, para realizarem exercícios de comunicação, como os que estão aqui sugeridos, que aumentam a conexão emocional entre os elementos do casal – https://oficinadepsicologia.com/love-maps-conhece-o-mundo-do-seu-parceiro/.
Pedir ajuda, individual, ou em casal, pode ser muito útil neste momento. Felizmente que temos hoje, ao nosso dispor, os meios que nos permitem fazê-lo online. Conte com a Oficina de Psicologia, e comigo, em especial, nesta altura tão desafiante.
Rita Fonseca de Castro
Psicóloga Clínica em Quarentena e regime de Tele-trabalho
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Muito claro e com boas estratégias. Interessante.
Fabuloso!
TEMA BASTANTE ATUAL E NECESSÁRIO. ABORDAGEM TRANQUILA AO MESMO TEMPO OBJETIVA. PARABÉNS!
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