Ouvimos muitas vezes falar em má-fé, algo que associamos normalmente a um processo litigioso, a agir com dolo em relação a algo ou com alguém. O termo é utilizado vagamente, para definir quando se age contra princípios éticos universais, já estabelecidos.
Em meados do século XX, ainda na onda da 2ª Guerra Mundial, Jean Paul Sartre publica “O Ser e o Nada”, talvez um dos tratados mais conhecidos da filosofia existencial que ressurgia naquela época. Destacavam-se outros filósofos como Beauvoir ou Camus, mas foi Sartre quem avançou e delineou uma má-fé diferente daquela a que estávamos habituados.
Má-fé continuou a significar agir com dolo, mas desta vez, connosco próprios. Perdida às vezes numa linguagem complexa, Sartre define com clareza o conceito, articulando o mesmo com duas histórias específicas, sendo a mais famosa a de um empregado de café.
Sartre descreve um típico café parisiense, mas com uma ligeira diferença: há qualquer coisa no empregado que parece estranha. Mexe-se com demasiada precisão, aplica-se aos seus movimentos como se de um mecanismo se tratasse, a sua voz e os seus gestos cedem e fazem parte deste mecanismo. Está a interpretar um papel. A interpretar os gestos e a precisão que estavam pré-definidos para si pelo seu empregador ou por aquilo que era esperado de si.
Este empregado de café encarna a nossa existência em vários aspectos. Todas as nossas profissões têm características específicas, instâncias pré-determinadas às quais temos de “obedecer” de modo a poder fazer o nosso trabalho.
No entanto, estas características retiram-nos a vontade de ser quando a nossa experiência se torna unicamente isto. Ao repetir um padrão específico, pré-orientado, estamos a colocar de parte o nosso self-autêntico. Colocamos de parte a nossa razão para existir, estamos, para todos os efeitos, em piloto automático e afastamo-nos da nossa responsabilidade, da nossa capacidade crítica para poder escolher.
Esta é a má-fé sartriana, não uma interpretação de um papel específico, mas sim quando nos escondemos e afastamos de nós mesmos, quando nos causamos dolo e recusamos a nossa responsabilidade.
No exemplo do empregado de mesa, todo o seu ser se encontrava orientado para aquilo que estava a fazer. Não estava focado ou empenhado na tarefa. Notava-se no mesmo, estranheza na maneira como se conduzia, estava a interpretar um papel e, recusava perceber que o estava a fazer, por estar a esconder-se de si, ou por estar no que definimos como piloto automático. Para todos os efeitos, o empregado estava a recusar a sua responsabilidade naquela situação, a recusar quem ele era.
Todos nós já actuámos deste modo em alguma ou outra instância da nossa vida. Sabemos de algo que não é autêntico, que não se enquadra no nosso modo de ser e acreditamos não ter outra hipótese senão fazer isto que nos é desconfortável.
Um dos elementos essenciais desta má-fé, é a percepção de que estamos de facto a interpretar um papel e não deixamos espaço a mais nada. Temos consciência disto mesmo e por ser doloroso, ou difícil, permitimo-nos a interpretar esse papel com o qual estamos desconfortáveis.
Quantas vezes não nos aconteceu isto? Quantas vezes não estivemos já em situações onde o nosso comportamento era pré-determinado e tivemos de interpretar um papel? É possível, que tendo em conta a nossa relação com os outros e com o mundo, tenhamos de ocasionalmente fazê-lo, mas podemos fazê-lo, talvez com consciência das nossas escolhas ali, sabendo que a nossa experiência não tem de ser unicamente esta.
Esta má-fé é algo que ocorre naturalmente, na grande maioria das vezes nem nos apercebemos, talvez nem tenhamos consciência de que estamos a interpretar um papel. É quando este papel se torna dissonante com quem nós somos, com os nossos valores e, a partir do momento em que tomamos consciência disso, que se torna um problema.
Aí, ficamos muitas vezes sem saber o que fazer. Entre a espada e a parede. Parece que temos de continuar neste papel que não nos faz sentido, porque é apenas isso que conhecemos, ou porque é difícil demais mudar, ou sentimos que não conseguimos.
É aqui que o acompanhamento psicoterapêutico tem um papel fundamental. Permite-nos entrar em contacto connosco, definir um projecto de vida, dar conta do que é nefasto para nós no papel que estamos a interpretar, dar-nos ferramentas para o enfrentar e, se fizer sentido, mudar o paradigma do nosso teatro, ou dar-lhe um novo significado.
Por vezes, não conseguimos atender às nossas necessidades sozinhos e aí, talvez possamos carecer de alguém que nos aponte os momentos em que estamos a agir de má-fé para podermos ter a noção de que podemos fazer diferente.
Mantermo-nos deliberadamente a interpretar um papel com o qual não nos identificamos, como modo de evitar essa realidade, seria viver, como Sartre diria, em má-fé, ignorando as nossas responsabilidades e a nossa liberdade em situação.
Sartre
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