Na minha prática clínica, por vezes, surgem crianças que são elogiadas pelo seu comportamento. Têm geralmente uma boa conduta no contexto escolar, são responsáveis – muitas vezes eleitas como delegadas de turma – e parecem ter uma postura que aponta para maior maturidade, em comparação com os pares da mesma idade. Conhece crianças assim? Apesar de parecerem mais maduras, prevenidas, com capacidade de pensar antes de agir e de planear – muito! – esta atitude pode esconder um mundo interno pautado por ansiedade.
A Perturbação de Ansiedade Generalizada (PAG) carateriza-se por uma preocupação excessiva e incontrolável sobre estímulos e circunstâncias diversas, sendo que tudo é passível de gerar preocupação. Este estado interno causa um constante mal-estar, irritabilidade e desconcentração, interferindo sistematicamente com a vida da criança. Crianças com esta perturbação passam o seu tempo a planear e a garantir que nada pode correr mal, pois imaginam as piores consequências para as suas ações. Por estas razões, o comportamento exemplar pode ser confundido com um estilo de funcionamento ansioso, alinhado com o cumprimento de expetativas dos adultos e com o minimizar de riscos.
Como pode ser a vivência interna de uma criança com PAG?
Esta perturbação surge quando a criança atinge um nível de desenvolvimento cognitivo que lhe permite fazer representações simbólicas de si mesma e do futuro. A crescente capacidade de auto-reflexão e meta-cognição começa a emergir aos sete anos de idade. A partir daí, na sua imaginação, abre-se espaço para pensar constantemente acerca de possíveis consequências negativas e desenvolver um discurso interno em conformidade, perdendo-se em preocupações, que se compõem por pensamentos repetidos e persistentes, generalizados, intrusivos e antecipatórios, em que imagina os piores cenários, mesmo que irrealistas ou distorcidos. Estes cenários podem incluir muitas vezes fenómenos e circunstâncias sobre as quais existe pouco controlo, como as catástrofes naturais e as doenças.
Para alguns pais que recebo em consulta, assim como para alguns educadores, pode não ser fácil identificar sinais desta perturbação, sobretudo se as crianças são mais pequenas.
Entre os 2 e os 6 anos, é mais provável que os primeiros sinais de PAG se manifestem não tanto através da ruminação e expressão de preocupações, mas mais através de perguntas constantes, pedidos de confirmação, ou necessidade persistente de reforço e feedback por parte de um adulto. A PAG nas crianças mais novas pode-se manifestar sobretudo nos contextos da família e dos pares. As crianças podem apresentar, por exemplo, uma grande sensibilidade relativamente à sujidade, ao cuidado no manuseio dos seus brinquedos, à possibilidade de se magoarem na banheira. Podem acordar várias vezes durante a noite, imaginando cenários que contemplem a possibilidade de terem magoado outra criança no parque infantil naquele dia ou imaginando que o brinquedo que deixaram esquecido no carro pode aparecer danificado no dia seguinte. Em sintonia com estas manifestações de ansiedade, podem apresentar irritabilidade, inquietude, fadiga e incapacidade de se divertirem durante as brincadeiras, e serem esses os comportamentos observáveis pelos adultos se a criança não verbalizar aquilo que imagina. Estes são sintomas e comportamentos que podem ajudar na identificação da PAG em crianças mais novas. Esta identificação é importante, na medida em que a presença de sintomatologia desde a primeira infância pressupõe um pior prognóstico, quando comparado ao início mais tardio, mas também permite o início de um trabalho psicoterapêutico mais precoce, permitindo à criança e à família lidar melhor com esta perturbação a longo-prazo.
As dimensões da PAG – como se manifesta para além da preocupação
Como já pôde perceber, a PAG não se manifesta apenas numa dimensão cognitiva composta por preocupações e ruminação mental. Existe também uma dimensão fisiológica e uma dimensão comportamental.
Em termos fisiológicos, a criança pode manifestar (sem outras razões médicas que o ajudem a explicar) dores de cabeça, dores de barriga, enjoos, cansaço constante, palpitações, nó na garganta, dores musculares e dificuldade em dormir.
No âmbito comportamental, estão presentes comportamentos de evitamento e de inibição.
O evitamento por vezes não é reconhecido, pois pode surgir de forma subtil. Exemplos de uma atitude evitante são, durante as aulas, não colocar o dedo no ar quando não se tem a certeza da resposta, ou mesmo desviar os olhos do ecrã se passa na tv algo relacionado com temas preocupantes.
A inibição pode ser marcada nas crianças com PAG. Por estarem tão tensas podem ter dificuldade em envolver-se em atividades lúdicas e descontraídas, ou simplesmente ter dificuldade em estar com os amigos sem estarem em modo de hipervigilância. Estas dificuldades podem ter implicações na interação social, e por vezes abrir terreno à rotulação e ao bullying por parte dos pares.
Como é que a psicoterapia pode ajudar uma criança com PAG?
Apesar de a PAG ser tendencialmente crónica, a intervenção psicológica pode ajudar através da minimização do seu impacto e promover o prolongamento de períodos em que as preocupações são menos intensas.
O diagnóstico de PAG na infância baseia-se na observação e recolha de informação clínica junto da própria criança, da sua família e de outros contextos significativos, como a escola. A intervenção ocorre em várias frentes, não apenas diretamente com a criança, e pode ser necessário o recurso a fármacos em casos mais graves como terapia coadjuvante. A psicoeducação junto das famílias e da escola são também componentes importantes da intervenção, uma vez que esta perturbação pode ter uma forte interferência no funcionamento social, académico e familiar.
A PAG pode ainda existir em comorbilidade com outras perturbações de ansiedade e com perturbações do humor, como a depressão.
Em termos das modalidades de intervenção, dependendo da definição do que poderá funcionar melhor para cada criança e dependendo dos recursos disponíveis, poder-se-á realizar uma intervenção individual ou grupal, através das metodologias da terapia cognitivo-comportamental, com envolvimento da família para treinar uma gestão adequada desta problemática, tendo sido comprovada a eficácia deste tipo de terapia.
Se, ao ler este artigo, reconheceu alguns dos comportamentos da sua criança, conte comigo e com outros psicólogos da equipa infanto-juvenil da Oficina de Psicologia para poder ajudar.
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BIBLIOGRAFIA
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A minha filha de 15 anos tem vários comportamentos que evidenciam PAG, no entanto quando chegou à adolescência e coincidindo com a mudança de residência, deixou de ter o comportamento exemplar, embora a ansiedade e o sofrimento com cenários hipotéticos que não controla se mantenham muito ativos (por exemplo, com a mudança de escola imagina que não vai ter a capacidade de fazer amigos e ter uma vida social).