No verão de 1922, filósofo Martin Heidegger, ocupava uma pequena cabana de 3 quartos no coração da Floresta Negra, no sudoeste das montanhas germânicas. Ao longo dos anos, Heidegger escreveu dos textos mais enigmáticos e famosos da sua autoria,“Ser e tempo”.
Costumava dizer que tinha desenvolvido uma intimidade profunda com o edifício, paisagem e tudo o que lhe envolvia – até sugerindo que foi este ambiente que escreveu o texto – sem envolvência do filósofo em si.
Além da envolvência política questionável da época, Heidegger desenvolve um conceito de “Dasein” – ser-no-mundo, que explora interligação inseparável entre o ser e o mundo que o rodeia, no aqui e no agora. Algo que em princípio, acontece de forma natural para nós, sem ser um processo consciente. Na situação de eventos traumáticos, no entanto, isto já não sucede, se alguma coisa, o corpo é incapaz de estar inteiramente no aqui-e-agora, seja por evitamento do mesmo ou por ficar preso no passado ou ainda, por ficar a antecipar um evento semelhante.
A pessoa, neste caso, não consegue escrever a sua história pelo seu meio.
Trauma – e sintomas
O que está num conceito? Palavras entre as pessoas têm frequentemente significados pessoais, que ficam longe da definição do dicionário, e que frequentemente tem uma carga significativa emocional. É quase impossível descrever a experiência vivida, na sua totalidade, na primeira pessoa com alguns punhados de palavras – descrevendo com exactidão; imagens, visões, texturas, sabores, etc. Ainda para mais, quando estamos perante um evento traumático. Estes são tão avassaladores, que se torna impossível processar o que está a acontecer naquele momento, sendo que nos afeta a nível cognitivo, bem como a nível corporal (existindo mudanças fisiológicas cerebrais que acompanham o trauma) que na totalidade corpo/cabeça, não é possível assimilar a experiência vivida.
Mesmo que a experiência deste tipo de episódios seja única, existe modalidades e temáticas recorrentes nestes eventos, que levam as pessoas a agir perante sintomas e sensações de forma semelhantes. É frequente ouvir este tipo de relatos:
“Às vezes, sinto como se estivesse a reviver aquilo – basta ver uma coisa que me faz lembrar daquilo. De repente, as sensações, emoções e pensamentos que experienciei naquele momento voltam de forma intensa e perturbadora. É como se não pudesse controlar esses flashbacks, eles simplesmente aparecem e deixam-me paralisado.”
“As noites são difíceis, porque frequentemente tenho pesadelos perturbadores que me fazem sentir como se estivesse preso ali. Acordo a meio da noite em pânico, suado e ofegante… demora algum tempo a perceber que foi apenas um sonho.”
“Posso ter pensamentos intrusivos sobre a violência ou os detalhes, mesmo que faça tudo para não pensar neles. Esses pensamentos podem vir à minha mente quando estou a tentar dormir, quando estou a conduzir ou quando estou a fazer algo que distraia a minha mente. Eles podem ser muito intensos e difíceis de controlar, fazendo-me sentir ansioso, com medo ou em pânico.”
“Evito muitas coisas que antes gostava, porque elas me lembram do evento traumático. Pode ser um lugar específico, um cheiro, uma pessoa ou uma atividade que me faz sentir desconfortável e com medo. Às vezes, até evito sair de casa para não ter que lidar com esses gatilhos. Antes gostava de viajar tanto – agora nada parece-me interessante ou entusiasmante.”
“Sinto que o meu corpo está a reagir de forma exagerada, com tudo ao meu redor a parecer mais intenso e avassalador. Os sons parecem ensurdecedores, as luzes ofuscantes e as sensações extremas. A minha mente está acelerada e sinto que estou a perder o controlo. As minhas mãos tremem e a minha respiração está rápida e superficial, é difícil acalmar-me.”
“Sinto uma ansiedade constante que muitas vezes se manifesta como um nó no estômago. Fico inquieto, com os músculos tensos e agitado, incapaz de relaxar. Essa ansiedade pode ser desencadeada por situações que parecem inofensivas para outras pessoas, mas que para mim são muito assustadoras.”
“Estou sempre em alerta, à espera do próximo perigo. Qualquer coisa que pareça fora do lugar ou suspeita pode me deixar nervoso e assustado. Verifico constantemente as portas e janelas, olho por cima do ombro quando ando na rua, e fico à espera do próximo susto.”
Nestes parágrafos encontram-se vários tipos de categorias da experiência vivida do trauma – seja a re-experienciação, memórias intrusivas involuntárias, tentativas de evitamento ou um estado de vigilância excessiva – tudo nomenclaturas que não ajudam diretamente a pessoa a lidar com o que se está a passar, mas ajuda a contextualizar e a perceber.
Somos através do corpo, como é que podemos viver num mundo em que tenhamos as experiências traumáticas?
Os sintomas corporais, e as mesmas experiências, são um resultado de um processo incompleto que não permite o corpo/pessoa prosseguir na sua vida. A experiência vivida, que tipicamente é um processo contínuo na temporalidade, fica fragmentada, sem significado – sem compreensão.
A literatura científica desta temática é unânime em relação ao trauma – existe uma componente biológica, corpo, e como tal, é preciso endereçar este elemento. Seja por ganhar controlo sobre a nossa vida através de algumas técnicas de relaxamento, de terapias baseadas nas emoções, de terapias em geral, de EMDR e focusing, este tipo de respostas endereçam frequentemente o corpo em si. Seja por respiração, por estimulação visual, ou foco no que está a ser sentido no corpo.
Trabalhar com trauma implica necessariamente uma reintegração da continuidade da experiência pessoal, sendo necessário ir aos momentos dolorosos que podemos pretender evitar. No entanto, tanto o terapeuta quanto o cliente devemabordar os sintomas traumáticos sendo “amigáveis com o mensageiro”. A dor pioraria se enfrentada de frente, mas evitá-la também é intolerável.
Como tal uma boa abordagem procura dar um sentido ao trauma através de um equilíbrio de distanciamento do evento e em simultâneo de ligação ao mesmo (relacionar-se com o trauma sem se tornar nesse mesmo) criando um processo seguro para a pessoa. Idealmente, a experiência dessa pessoa consegue ser reintegrada, permitindo conectar-se ao ambiente envolvente, tal como Heidegger se sentia, a escrever na sua cabana.
—
Referências:
• Bessel van der Kolk, M. D. (2014). The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. Penguin Books.
• National Institute of Mental Health. (2022, January). Post-Traumatic Stress Disorder.
• American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed.).
• Australian Person-Centered and Experiential Psychotherapy and Counselling Association. (2019). Restoring the Wholeness of Being: Working with Trauma from the Focusing-Oriented Experiential Therapy Perspective.
• https://mitpress.mit.edu/9780262533669/heideggers-hut/
• https://www.psychologytoday.com/us/blog/suffer-the-children/202104/how-focusing-helps-anxiety-depression-and-trauma
O corpo e o trauma – Sintomas e a experiência
No verão de 1922, filósofo Martin Heidegger, ocupava uma pequena cabana [...]
Qual foi o interesse que este artigo teve para si?
Um belo texto que nos fala dos nossos traumas, a forma como nós podem afetar e um pouco de algumas soluções possíveis para evitar os seus efeitos nefastos